Aos 68 anos de idade, o economista e ex-deputado, ex-senador, ex-prefeito e ex-governador de São Paulo José Serra parte para a sua segunda tentativa de chegar à Presidência da República. A VEJA, ele falou dos motivos que o levaram a candidatar-se e do país que sonha em construir, caso vença: em síntese, um país que ofereça às pessoas oportunidade de crescimento. Oportunidade que, no caso dele, poderia ter faltado não fossem os esforços do pai, comerciante. "Ele carregava caixas de frutas no Mercado Municipal para que um dia eu pudesse carregar caixas de livros", diz. Foi na sala que abriga alguns deles, parte de uma biblioteca pessoal de 10 000 volumes, que José Serra concedeu a seguinte entrevista.
Por que o senhor quer ser presidente da República? Porque eu creio que o Brasil pode avançar mais, o Brasil pode mais, e eu me sinto preparado para isso. Eu me preparei a vida inteira para ser presidente.
O senhor sempre teve vontade de ser presidente?
Evidentemente, ser ou não presidente não é uma escolha sua, não depende apenas de uma decisão. Mas, desde a primeira adolescência, sempre tive vontade de me envolver na vida pública. Eu me lembro de um episódio curioso – e não quero aqui parecer pretensioso. Na 4a série do ginásio, eu tinha um professor de latim que se incomodava e, ao mesmo tempo, se divertia com o fato de eu ser muito barulhento nas aulas. Um dia, ele olhou para mim e disse aos colegas: "Esse aqui, o senhor Serra, vai ser político no futuro, e ele é quem vai mandar. Ele vai mandar em todos vocês aqui". Eu tinha uns 14 anos. Os colegas, claro, ficaram me caçoando, e eu mesmo fiquei embaraçado. Mas o fato é que foi uma observação que eu guardei para o resto da vida.
Desde que o senhor entrou para a vida pública, há alguma convicção que a experiência tenha modificado?
A minha experiência de governo, nos vários governos, me possibilitou conhecer o essencial de diversas áreas e também me ajudou a entender por que, algumas vezes, as coisas não acontecem. Por exemplo: se você deixar a rédea solta, elas não acontecem.
O senhor tem fama de centralizador. De onde ela vem?
Ela é errada. Uma coisa que eu aprendi ao longo das minhas experiências foi descentralizar: formar boas equipes, permitir que os diferentes integrantes tenham liberdade para trabalhar na formação das suas próprias subequipes e também evitar antagonismos. Para mim, é inconcebível a ideia de colocar um sujeito que pensa "x" e trazer outro que pensa "y" para, nessa divisão, eu arbitrar. Isso não existe comigo. Mas eu cobro muito, até porque tenho uma memória praticamente impecável em matéria de ações, de trabalho. E o computador acrescentou uma agilidade à cobrança que antes não dava para ter. Quando eu era ministro da Saúde, durante a noite eu escrevia bilhetes, a mão mesmo, com cobranças para A, B e C. No fim, dava um volume que tinha de ir dentro de uma caixa. Eu grampeava tudo, mandava para a secretária, e ela despachava. Hoje, com o e-mail, você escreve a um secretário: "E aí?". Ou: "E a ciclovia?", por exemplo. Com três palavras você se faz entender. Basta mandar um e-mail desses dia sim, dia não para que, dessa forma, as coisas andem.
Como o senhor pretende orientar a formação de sua equipe ministerial, caso seja eleito?
Eu consegui, na prefeitura e no estado, formar equipes sem indicações de vereadores, de deputados ou de partidos. As pessoas que vieram de outros partidos foram pessoas escolhidas por mim. Não existe isso de "tal setor nomeia tal cargo". Essa vai ser a orientação. Não é que não vai ter político, mas tem de ser um político apto para aquela função.
E como, então, o senhor fará o jogo político? Como fará para ter uma base forte no Congresso?
Através do Orçamento. Ao contrário do que se acredita, 90% das emendas que os parlamentares apresentam são boas. E você pode inclusive orientar. Dizer, por exemplo: "Quem fizer emendas para concluir obras terá prioridade sobre os que fizerem emendas para começar obras". Isso funciona, porque o que o parlamentar quer é aprovar a emenda e satisfazer sua base eleitoral. Não é só no Brasil que é assim, é no mundo inteiro – até nos países mais arrumadinhos. E esse é o melhor caminho para formar a unidade com o Legislativo. Outra coisa importante: nenhum grupo de deputados nomeia diretor de empresa pública. Nenhum. Isso porque, para um deputado, a pior coisa que pode acontecer não é ele não nomear: é o outro nomear e ele não. Tem de ter isonomia.
Quais serão suas prioridades na economia?
Eu tenho claríssima a prioridade que deve ser dada à área produtiva, à indústria. Até algum tempo atrás, vigorou o pensamento de que se deveria estimular só o setor de serviços. Isso é uma bobagem. O Brasil não pode voltar a ser uma economia primária exportadora. Isso não criaria empregos para 200 milhões de pessoas.
Por que os banqueiros gostam de falar mal do senhor?
Se falam, não chegou a mim. Eu acho que é importante para o Brasil ter um sistema financeiro sólido, e batalhei muito por isso. Na Constituinte, havia propostas de proibir bancos com capital estrangeiro de operar no Brasil e até de proibir bancos nacionais – ou seja, queriam liberar apenas os bancos locais. Eu ajudei a derrubar as duas propostas. E estava no governo quando foi feito o Proer, que realmente deu solidez ao sistema financeiro – solidez que permitiu, inclusive, o enfrentamento da crise atual. Agora, quanto a custos, taxas de juros, essas são questões operacionais de um governo. E aí eu tenho uma visão de que é essencial para o Brasil ter um sistema financeiro que empreste bastante, e empreste a custos suportáveis para as pessoas e para a área privada. Isso é uma meta. Em suma, quero dizer o seguinte: como ajudei a erguer a mesa, jamais a viraria. As pessoas do sistema financeiro que realmente me conhecem sabem disso.
O senhor, caso seja eleito, vai encontrar um Brasil que avançou na área social, mas que ainda tem carências sérias...
Eu acho que o Brasil avançou muito nos últimos 25 anos. Nós afirmamos uma democracia de massas, com uma Constituição que pode ter os seus problemas, mas que enfatizou como nunca as liberdades civis e políticas. Conseguimos acabar com a superinflação, avançar no combate à pobreza, consolidar o SUS, a inclusão educacional e até retomar o crescimento econômico. Não foi um desempenho brilhante, se você o comparar com o da Índia ou o da China, mas foi um desempenho razoável em relação ao dos países desenvolvidos. Agora, isso significa que as coisas estão resolvidas? Não. No que se refere ao crescimento, nós precisamos de infraestrutura. As carências nessa área são dramáticas e representam um gargalo para o nosso desenvolvimento.
E do ponto de vista da economia?
Há, nesse sentido, um desequilíbrio externo que vem se agravando pelo lado da balança comercial e do déficit em conta-corrente. Claro, nós temos reservas e temos tido entrada de capital, mas nove entre dez economistas se preocupariam com esse crescimento rápido do déficit externo. A eficiência da ação governamental, ou seja, a capacidade de fixar metas e de cumpri-las, é outro dado que preocupa. Ela ainda é baixa no Brasil. O grande loteamento político que foi feito resultou no aparelhamento de toda a esfera do setor público. Em relação às áreas sociais, há uma necessidade desesperada de avançar no campo educacional, no campo da saúde, que semiestagnou, e no campo da segurança – uma área em que, indiscutivelmente, o governo federal tem de se envolver mais. Até porque boa parte do crime organizado no Brasil se alimenta de armas e drogas que vêm sob a forma de contrabando, e combater isso é uma tarefa essencialmente federal.
No governo estadual, o senhor conseguiu aumentar o investimento e reduzir a relação entre a dívida e a receita, sem elevar impostos. E no governo federal, dá para aplicar a mesma receita?
Não só dá como será feito. O enfrentamento dessa questão se dá, como se deu em São Paulo, pelo aumento da arrecadação via combate à sonegação, e não pelo aumento da carga nominal de impostos. O corte de custos e de desperdícios aqui também teve um papel imenso.
Como é possível cortar gastos no governo federal?
Você revisa o preço de todos os contratos, para começo de conversa. Mas é preciso também ter novas formas de gestão. É crucial introduzir o fator mérito nas remunerações, por exemplo. Isso tem dado certo em São Paulo. A ideia geral é cortar desperdícios, reduzir custos e selecionar as prioridades. Com isso, você faz mais e melhores investimentos.
O PT tentará transformar esta eleição numa comparação dos governos Lula e Fernando Henrique. Como o senhor vê essa estratégia?
Eu acho que a eleição tem a ver com o futuro, não com o passado. É assim que a população vai julgar. De toda forma, o governo FHC acabou, e agora será julgado pelos historiadores. Assim como os governos anteriores. Assim como o de Lula será julgado um dia, quando o peso do poder dele não mais puder interferir. E aí veremos o que a história dirá de cada um. É espantosa a quantidade de energia que o PT gasta para falar mal do Fernando Henrique. Quando são aliados deles, como o Sarney e o Collor, só elogiam. Quando são adversários, atacam sem limites. Ou seja, não é uma avaliação honesta. É enviesada. Eu fui ministro de FHC e fui aprovado na função. Tanto que depois disso me elegi prefeito de São Paulo e governador de São Paulo. Agora, todos sabem que eu não sou FHC, sou José Serra. Isso parece incomodar o PT, mas é a realidade.
E quanto à reeleição? O senhor é mesmo contrário a ela?
Eu sou contrário. A minha proposta de reforma política incluirá o fim da reeleição no Brasil.
Qual será a prioridade zero do seu governo?
A essência do governo, como orientação para o Brasil, precisa ser a de oferecer uma maior abertura de oportunidades para a população. O povo brasileiro quer é ter oportunidade na vida: estudo, boa saúde, emprego para os jovens, acesso a bens culturais e de lazer. Nasci e fui criado num bairro operário de São Paulo. Eu me lembro de todos os meus amigos, de criancinha ou de adolescente, que não puderam estudar porque tinham de sustentar a família, ou que não tinham ambiente familiar porque o pai era alcoólatra ou eles tinham muitos irmãos... Por que eu consegui estudar e chegar ao que sou, estudando em escola pública? A explicação é muito simples: porque eu era filho único. Se eu tivesse quatro irmãos, como a maioria, quando chegasse ao ginásio, teria de trabalhar para eles poderem ir à escola. Então, o que o povo brasileiro quer não é muito, é oportunidade.
Qual seria a frase que o definiria?
"Na vida, ninguém fracassa tanto quanto acredita nem tem todo o sucesso que imagina", de Joseph Rudyard Kipling, via Jorge Luis Borges. Trata-se de uma reflexão que levo muito em conta – minha vida, aliás, é uma ilustração disso. Tê-la em mente permite que sejamos mais humildes nas vitórias e mais altivos nas derrotas. E há uma frase que complementa essa: "O único limite às nossas realizações futuras são as nossas dúvidas no presente. Vamos adiante com fé", do presidente americano Franklin Delano Roosevelt. Para mim, a política não é a arte do possível, mas a arte de ampliar os limites conhecidos do possível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário