Não
consta no meu programa incluir nestas crônicas assuntos teológicos,
filosóficos, religiosos de modo geral. Mas, para meus objetivos de hoje, vou
apenas lembrar que os dez mandamentos se resumem em dois: Amar a Deus sobre
todas as coisas; Amar ao próximo como a si mesmo. Você encontra isso facilmente
nos evangelhos e no catecismo, e lembro também que a caridade deve ser feita ao
próximo por amor a Deus. Fazer um benefício a qualquer pessoa ou grupo, sem ter
em vista o amor a Deus, pode ser muitas coisas, não será caridade – Deus
caritas est.
Dou-lhe
um exemplo, para não deixar margem a dúvidas. Imagine duas pessoas exercendo no
mesmo local as mesmas funções e atividades. Uma é enfermeira, faz curativos,
aplica medicamentos, mede a temperatura e pressão – as tarefas habituais do seu
ofício. No fim do mês ela recebe o salário combinado, e ninguém lhe deve nada a
mais pelo seu trabalho. A outra é religiosa consagrada a Deus, com vida
conventual, e dedica todo o tempo disponível a cuidar de enfermos nesse mesmo
hospital. Presta em geral os mesmos serviços da enfermeira, mas no fim do mês
ninguém lhe paga um salário por sua atividade, e a subsistência dela é provida
pela entidade religiosa à qual pertence. Não lhe parece natural só a religiosa
ser conhecida como irmã de caridade? Não se trata apenas de receber ou não um
salário, pois a enfermeira, mesmo sendo remunerada, pode incluir no trabalho
uma intenção, uma dedicação extra, que o eleva a outro nível. A principal
diferença é a intenção com que ajudam os necessitados.
Se
alguém cria com recursos próprios uma fundação destinada a cuidar de menores
abandonados ou outro grupo de necessitados, presta um bom serviço à
coletividade. Mas será puramente filantropia (a etimologia já indica uma
dedicação ao ser humano), e não caridade, quando o amor a Deus está ausente da
intenção. É claro que Deus quer esses benefícios, mas cabe ao benfeitor
reportar-se a Ele, para seu gesto de benemerência merecer o nome de caridade.
Alguém
pode contestar-me, alegando que a drástica redução das doenças e calamidades se
deu pela ação do homem. Quase não existem mais a fome, doenças sem tratamento,
pobreza, mendigos. Bem sei que esse progresso foi bom, e deve ser elogiado, mas
o que estou discutindo é outra coisa – a intenção. Se faltou nesse progresso a
intenção de agradar a Deus, não se pode falar em caridade. E se Deus é
esquecido, pode retribuir na mesma moeda, retirando suas bênçãos de obras
assim.
Aonde
quero chegar, com estas considerações? Se você pensou em flechas, não está
longe do meu objetivo. E agora só falta fazer a pontaria e atirar.
Antigamente
os pobres pediam uma esmola pelo amor de Deus. Recebendo-a, agradeciam com a
fórmula clássica: Deus lhe pague. Raramente se ouvem hoje essas formas de
pedido e agradecimento. Os pedidos mais educados limitam-se ao me dá um
trocado. E o agradecimento educado, quando existe, não passa do obrigado. Não
lhe parece que até os mendigos já não pensam mais em Deus? Não é raro, aliás,
ouvir desaforos ou xingamentos quando alguém nega esmola a um deles. Há mesmo
os que protestam quando recebem esmola inferior à que desejavam. Portanto, de
parte a parte cresce e prolifera o esquecimento de Deus. Não deve surpreender,
quando se sabe que quase tudo no mundo conspira contra o amor a Deus.
Você
já notou que os mendigos estão desaparecendo das ruas? Será que já não precisam
de esmola, enriqueceram? Uma explicação me parece estar no mau costume de não
dar esmolas, propagandeado por ideólogos ateus com base em slogans como
Assistência social, um direito do cidadão e um dever do Estado. Com base nessa
cantilena, muitos deixaram de ajudar os pobres. Tornando-se difícil para estes
obter o que antes era bem fácil, tiveram de baixar em outra freguesia, por isso
quase não são vistos nas nossas megalópoles. Mas ninguém ignora a grande eficiência
do governo em atividades assim, e os pobres vão se amontoando em albergues,
asilos, orfanatos, onde lhes dão uma caricatura do amor ao próximo que antes
recebiam.
Quando
se retira do horizonte o amor a Deus, o amor ao próximo sozinho não se
sustenta. É muito cômodo transferir essa responsabilidade para o governo – um
ente anônimo, que na prática significa ninguém. Um pequeno passo adiante, e
logo surgem muitos que, ao invés de cumprir o que se espera dos responsáveis
pela assistência aos necessitados, passam a utilizar em benefício próprio os
recursos destinados a essa assistência. E aí temos o fim da linha. Começando
pela falta do amor a Deus – que, aliás, não se restringe a esse aspecto
assistencial – a decadência vai logo da filantropia à corrupção e pilantragem,
bem merecendo o qualificativo de pilantropia.
Por: Jacinto Flecha - Médico
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